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2019

CARNEECORPO – ENTREVISTA COM A ARTISTA MARIA ANTONIA

por THIARE MAIA AMARAL

Quando fui apresentada ao trabalho da Maria Antonia, a pesquisa CarneeCorpo me trouxe muitas perguntas. Fiquei interessada nas várias camadas de corpo presente em sua pesquisa.

Tudo é corpo, mas nesse tudo podemos encontrar diferentes noções de corpos; corpos eróticos, corpos carne, corpos orgãos, vísceras, pele, corpo forma, corpo conceito. Foi à partir desta observação que comecei meu diálogo com a artísta sobre sua obra, processo e imaginário. 

Vendo o seu trabalho de longe percebo o corpo e carne sendo a sua pesquisa mais profunda. O que é corpo e carne no seu imaginário?

Sim. Corpo e carne são o todo no meu trabalho: Invólucro e estofo.  

Corpo é pele, material que embala, que envolve, guarda. Ele também é suporte se entendermos que não é plano ou estático, mas ambiente tridimensional que pode ser acessado por fora e por dentro. Por dentro, a Carne, por fora, o público. Corpo é um conjunto de coisas no qual pode se estabelecer uma ou mais relações com.

Carne é material, matéria, recheio. Aquilo que existe entre e na Natureza. Ser humano é Natureza. É o recheio, aquilo que completa, mas que também desfacela. 

Entendo Carne enquanto material comum a todos os seres humanos.


Nos meus estudos descobri que as vísceras estão ligadas ao sistema nervoso parassimpático, que elas guardam muita informação e memória. Como se tivéssemos dois corpos, o corpo consciente e o corpo não consciente,  mas que no entanto, sabemos ser o mesmo corpo.

Me parece que a pele é a maneira mais fácil e direta de se comunicar com esse corpo não consciente. O seu trabalho, as imagens que promove, me parece também provocar essa comunicação. Dito isso, como surgem as obras no seu processo?

É curioso você ter trazido uma parte de nosso conjunto-corpo para ser estopim da sua pergunta. Li um pouco sobre o Parassimpático para conseguir acompanhar seu raciocínio e descobri: ele é engrenagem para resolução de problemas. A pintura nada mais é que uma série de tomadas de decisão. As minhas obras surgem do processo de relação atenta com o mundo e uma obra também surge a partir de outra obra. Entendi, a partir da observação do meu trabalho, que elas nascem de outros trabalhos quando o primeiro é Coisa. 

Na verdade esse processo de geração de trabalhos é bem amplo. Vivo o meu trabalho a todo momento, então é quase utopia dizer que existe uma receita neste processo de geração de obras. 

Uma conversa, uma expressão ouvida de relance, uma cena que me atravessa quando em deslocamento, um trecho de um livro, um livro, uma notícia de jornal, uma pessoa, um momento histórico, uma questão social ou antropológica, um ruído, um cheiro, uma imagem da internet, um sentimento, uma experiência, entre outras coisas são estopins para um/o trabalho.

O mais importante é estar atenta, presente e dentro do corpo-coisa e corpo-trabalho. 
 

Eu falei do parassimpático porque vc falou do corpo dentro, da carne e da pele e me lembrei das vísceras que guardam informações secretas.

Você falou de estar atenta ao corpo coisa e ao corpo trabalho. Qual a diferença entre os dois?

"Corpo-coisa" utilizei enquanto me referindo ao indivíduo/individual e a um instante.

Em "corpo-trabalho" fiz referência ao todo. Uma tentativa de abrangência maior do fator tempo-espaço. 


Muito interessante essa multiplicidade ou sobreposições das camadas do corpo. Isso está presente bem forte no seu trabalho. E o corpo erótico? Ele tb está presente?

Sempre presente. O trabalho, a pintura em si, é um corpo erótico. Há muitos que se equivocam e colocam o sexo no lugar erotismo. O corpo erótico seduz, flerta, brinca, atrai e é importante dizer que não dá mais para se esquivar desta sensação. Assumamos: Somos movidos por desejo. O meu corpo de trabalho é uma grande sedução, não só minha, que se excita pelo e com o trabalho; mas também do outro que se excita junto; e do próprio trabalho, que é corpo libidinoso. 

 

Um aspecto formal da pintura é a criação deste lugar de frenesi, de atração. Enquanto pintora, o processo de entender e dialogar com esse corpo erótico também é um exercício. Minhas pinturas são íntimas e esse lugar, que vezes alcanço de extrema intimidade, me permite chegar quase que num tom universal. Não leia universal enquanto o todo. É um universal em micro escala, mas ainda assim é grande. 

 

Discuto em meu trabalho o ser mulher. Ser enquanto corpo antropológico e ser enquanto corpo biológico. A erotização distorcida do corpo da mulher criou mazelas que afligem hoje a maior parte das mulheres. Não somos mais, mas ainda nos sentimos vulneráveis e com medo de termos nosso corpo violado. O corpo erótico aparece em meu trabalho na necessidade de afirmar o poder, lugar e juízo deste corpo. 


 

Muito importante isso que vc diz que o corpo erótico é um corpo com poderes. E acho que por isso temos tanto medo dele. Por quê você acha que nos assustamos tanto com o corpo erótico? 

Como disse, ele é um corpo poderoso e poder é responsabilidade e capacidade de realização e articulação. É difícil lidar com este lugar de autonomia e força. Não se pode ser leviana. 

Nós mulheres somos recém "alforriadas". Tivemos permissão para votar, estudar, jogar futebol, sair sozinhas, trabalhar, ganhar nosso próprio dinheiro, dizer o que pensamos, sermos bem sucedidas e etc há menos de 100 anos. Nossa liberdade ainda é jovem. É uma criança muito forte, mas ainda é jovem. 

Falo do meu lugar enquanto Mulher: Sempre fui revolucionária. Não pareço, mas sou. Meu silêncio é bem potente. Cresci ouvindo o que uma menina deveria fazer, como deveria se comportar - aquela coisa quase Damares. O problema foi o uso leviano da Língua Portuguesa. Me diziam o que eu deveria fazer para ser menina, mas pouco me disseram o que eu deveria fazer para ser Mulher. Fui observando as mulheres ao meu redor e descobrindo. 

Acho que as outras mulheres também estão descobrindo o que é ser mulher e o que é carregar esse corpo com poderes. 

Acredito que esse lugar assustador existe porque ele reside no desconhecido e ainda não foi revelado. Em um recorte Brasil, somos mais de 200 milhões de pessoas. Qual a porcentagem de brasileirxs que referenciam a mulher e seus poderes? Deve ser mínima a parcela. Tão mínima que o IBGE nem procura saber… Lutamos para que este número, que eu nem sei qual é, cresça. Talvez daqui a 100 anos nós não tenhamos mais esta questão em destaque, mas hoje, este lugar do "poucos entendem" é um problema. Acabamos por não discutir o corpo erótico e sim o medo de tê-lo. 

Eu tenho medo de o expor e o tê-lo violado, mas também há quem não saiba que ele sequer existe. Tem muita gente dormindo no ponto. 

 

 

Tem uma frase de algum filósofo contemporâneo que diz: "Quer fazer revolução? Então pare. Não faça nada." Então me diga o que é "revolução" para você? De onde ela vem?

Para te explicar vou precisar dar uma volta pelas coisas que penso. 

Tenho uma adoração por dicionários. Me interessam as definições porque ali consigo encontrar brechas para construir meu discurso. Esqueçamos um pouco o universo político e/ou a ideia de revolta. "Revolução" é também volta completa, giro, marcha circular. 

No ano passado me debrucei sobre o tema Interação e estudei as Coisas e o como as Coisas acontecem. Da coisa enquanto Coisa e da relação do criador e interator para com uma coisa ou Coisa. Nos meus registros, acabei por identificar uma prática na Interação e estabeleci o termo "Loop Processual". 

Vou tentar explicar de forma objetiva:

O Loop Processual é um giro constante que acontece a todo momento. Nós, humanos, estamos a interagir com as coisas e a cada interação, seja consciente ou inconsciente, um novo loop acontece. 

Para facilitar: Imagine-se no centro de uma nuvem. Ao seu redor há um monte de círculos. Cada círculo roda em uma velocidade. Os círculos possuem tamanhos diversos e estão distribuídos no espaço de maneira "aleatória". Vezes se sobrepõem.

O círculo é como um anel e para completar uma volta há 4 estágios: Identificação, Compreensão, Articulação e Conclusão/Questão.

Primeiro Identificamos a coisa. Ao reconhecermos-a e/ou vivermos um estranhamento podemos dizer que passamos para a etapa de Compreensão. A Articulação é o estabelecimento de um diálogo e conexão que gerará uma conclusão/questão. Este último momento é sempre estopim para o primeiro: Identificação. É um loop, uma volta completa, giro, marcha circular, revolução.

Ela, revolução, vem da interação humano para com a(s) coisa(s). 

 

 

 

 

 

 

Maria Antonia é artista e Bacharel em Design de Mídias Digitais pela PUC-Rio. Discute em seu trabalho as noções de corpo, sociedade, gênero e as relações humanas. A pesquisa "CarneeCorpo" é espaço de investigação desde 2014. Atualmente debruça-se sobre a relação observador-obra e busca facilitar a entrada do interator na pintura.

PUBLICADO EM https://heretica.co/carneecorpo-entrevista-com-a-artista-maria-antonia/

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